segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

do afundar-se


"Olhou à sua volta. «As casas...», pensou compassivo, e encolheu os ombros. As casas pareciam-lhe manter-se erguidas indevidamente, com uma espécie de coerência e estabilidade desajeitadas. As pessoas, atrás das janelas, levavam objectos de um lado para o outro, pondo as mesas para o jantar. «Como se alguém se preocupasse em fazer a cama numa cabine de um barco que está a afundar-se», pensou."

em A Ilha, de Sándor Márai

domingo, 25 de novembro de 2012

era para ser uma lista


queria escrever sobre a fadiga e sobre a combustão dos órgãos. do fogo que consome lentamente o interior do meu corpo. e de todas as coisas à volta. e depois sobre as balas em Gaza e o arame farpado. e também queria escrever que é o dia em que se diz: chega de violência contra as mulheres. e disto tudo concluir que este mundo é uma máquina gigante com as peças estragadas. está o relógio parado no mesmo sítio e a verdade é que, se não fosse pelos dias e as noites o comprovarem, diria que o planeta parou de girar.
e agora que escrevi sobre tudo isto que queria escrever: vou tentar.

domingo, 4 de novembro de 2012

do(s) movimento(s) repetitivo(s)



«Fechas a porta à chave com duas voltas e sais.»

A Naifa - Monotone
3Nov12

sábado, 20 de outubro de 2012

do texto sem vencedor



páro em qualquer caminho ou percurso para observar os pássaros. rodopio com os pés e os braços abertos na minha cabeça. tenho tonturas quando me levanto, claro. o frio chegou. a febre também. um regresso surpreendente. os resultados a chegarem e eu a desfalecer de espanto e medo. e mandar o medo para um sítio, desde que tenha paredes com curvas acertadas; não apertadas, sem que magoem quando lá passar. o amor está nas nossas mãos, quando as apertamos e no nosso peito quando os unimos, quando a casa está fria mas as mãos estão quentes e quando o amor é uma manta.

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

de seguido



costas, 
pedras, 
folhas, 
onda, 

pedras, 
costas, 
        redondo, 
dobras, 

segreda, 
ama, abraça, ri, 
chora, come, dorme, 

.
.
.

vai embora.

sábado, 29 de setembro de 2012

das folhas secas



silencio as palavras que carrego no peito e que me ficam presas nos lábios. não são umas mãos que me irão agarrar. não são cacos. não são vestígios. o outono cai das árvores. passeio entre sementes e folhas secas. castanhas, gatos, corujas, asas que rasgam o céu. e dormir num barco todos os dias e acordar cansada, mais cansada, dias anteriores e dias futuros. o tempo presente é um presente. segundo após segundo. silencio-me só por agora. não quero que saibam de mais nada. olá outono.

terça-feira, 4 de setembro de 2012

das pedras


«Marco Polo descreve uma ponte, pedra a pedra.
- Mas qual é a pedra que sustém a ponte? - pergunta Kublai Kan.
- A ponte não é sustida por esta ou por aquela pedra - responde Marco, - mas sim pela linha do arco que elas formam.
Kublai Kan permanece silencioso, reflectindo. Depois acrescenta: - Porque me falas das pedras? É só o arco que importa.
Polo responde: - Sem pedras não há arco.»

Italo Calvino, As Cidade Invisíveis
trad. José Colaço Barreiros

sábado, 1 de setembro de 2012

na sala com Grão Kan e Marco Polo


«Caminhas sempre de cabeça virada para trás? - ou: - A tua viagem só se faz no passado?
Tudo para que Marco Polo pudesse explicar ou imaginar que explicava ou imaginarem que explicava ou conseguir finalmente explicar a si próprio que aquilo que ele procurava era sempre algo que estava diante de si, e mesmo que se tratasse do passado era um passado que mudava à medida que ele avançava na sua viagem, porque o passado do viajante muda de acordo com o itinerário realizado, digamos não o passado próximo a que cada dia que passa acrescenta um dia, mas o passado mais remoto. Chegando a qualquer nova cidade o viajante reencontra o passado que já não sabia que tinha: a estranheza do que já não somos ou já não possuímos espera-nos ao caminho nos lugares estranhos e não possuídos.»

Italo Calvino, As Cidade Invisíveis
trad. José Colaço Barreiros


Querido Setembro,

Obrigada por chegares.
Tua,

S.

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

mãos por trás das tuas roupas



«What do you feel about GAP clothes being sold for average of $50 per item in UK?

“I feel so hurt to see the price of GAP is so expensive while I got very low wage from it.  I work so hard from day to day (At least 1000 shirts per day) but I just get a very low wage.  So GAP finds very high benefit from this.
I feel unfair that they just sell few of shirts and it is equal to my wage per month."» 

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

da granja


granja, upload feito originalmente por sossego.



Na Granja: sabemos sempre as horas mas nunca temos pressa.

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

do vinte e três ao vinte e sete


digo-lhes: os egípcios acreditavam que o corpo era um abrigo temporário para uma alma. as crianças brincam com as palavras como borboletas e carrinhos de linhas. durante o dia cosem as palavras umas às outras numa não-lógica própria e mostram-me imagens que desconhecem mas que estão a descobrir. à noite, um olhar é um abraço. um abrigo ou desafio. não há espaço para os órgãos. apenas empurrões constantes por dentro. estômago avariado. um corpo pasmado com a força de um braço agarrado a outro. duas mãos na testa. o centro. respiração:


centro-te, na vez de sinto-te.





da plataforma


quantos quilómetros andaria de uma ponta à outra da estação de comboio, junto à plataforma, junto à queda, sem parar? quantos segundos do teu dia são a pensar em sorrisos? «o meu mundo é hoje», respondes-te. cantas um refrão por dentro. e por isso danças e friccionas os teus braços no linóleo até queimar e ficar com o corpo colado e magnético. deixas criar as crostas. andas na rua e atrais as pedras e deixas-te atrair pelos prédios e janelas e as pessoas lá dentro. olho cada vez mais para dentro das coisas, desvelando o que está por fora, que é o avesso. quando vou e remexo no lixo com aquele homem que procura algo para comer. o bafo a álcool é exterior-avesso. o cheiro exterior-avesso. as feridas internas é que estão por-fora-por-dentro. aprendo a desistir para me agarrar mais profundamente. acto constante de (re)criação. não ter medo de mandar o previsível à merda. não terminas porque não és um ponto. nem nunca serás.


26 de julho, 2012

sábado, 28 de julho de 2012

no contexto da imobilidade


«Se a matemática fosse assim tão divina e universal, como conceber que a eliminação de uma única espécie - o Homem - de entre biliões de espécies existentes pudesse eliminar por completo essa lógica dos números em toda a superfície do planeta?»

Gonçalo M. Tavares, em Um Homem: Klaus Klump

quinta-feira, 12 de julho de 2012

das listas prometidas


1# guardei a primeira concha do ano
1.1# devolvi-a a duas carpas
2# ombros queimados
2.1# novas sardas na cara
3# the day before the last day
4# crescer
5# «experimentar saber se sei tudo o que eu sabia, se eu sei o que é saber»

das asas


(...) os pássaros não morrem nunca. renascem do vento no segundo a seguir. eu consigo vê-los, e hoje está um dia especialmente ventoso. vento por todas essas asas que batem pelos suspiros dos que as não têm.

do caderno 11.jul.12

do sublinhar da poesia de outros

1

Quebrar o silêncio
e depois recolher
os pedaços
testar-lhes o corte
o brilho
cego

Ana Martins Marques
"10 visitas ao lugar comum": http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-68/poesia/10-visitas-ao-lugar-comum

quarta-feira, 4 de julho de 2012

do espaço vazio e das circunstâncias


numa voz doce e terna se grita "que se lixem as circunstâncias" e ferozmente se salta de um lugar para outro pelas dobras do corpo e arrancando os segredos dessas dobras. arrancar o coração e dividi-lo como gomos de laranja e, depois, deixem-me sozinha. irei escrever listas todos os dias. não fugir às tarefas. para desarrumar para desorganizar. porque só regressas para desarrumar. sempre. quanto mais tiveres menos terás. menos me terás. e perdes e perdes e perdes e perdes. e vais para a casa a perder. todos os dias. horas sem tempo. a vê-lo passar. aperta-o. esmiúça-o. porque me desamparo quando tropeço. tenho um buraco vazio do lado esquerdo. por dentro da barriga. poderia colocar outro coração nesse sítio e não posso e é por isso que quero chorar e não consigo. já deixei de conseguir chorar, é certo. e o olho direito está inflamado porque no nosso corpo os sinais funcionam sempre do avesso. descobri que são o que são e que sou o que sou e que afinal talvez não o saiba. que descobri palavras nas pedras da calçada porque talvez alguém as tenha gravado em segredo para alguém ler um dia. não existe mágoa quando se constrói. a minha boca está seca. seca, seca. há calor por dentro que seca tudo. calor por fora. o sol, a lua. os dias. hoje choveu. já escrevi na lista. e agora é contar os dias.

sábado, 23 de junho de 2012


«É verdade que os islamistas se apropriaram das revoltas, mas nas ruas da Tunísia ou do Egipto continuam também os democratas e as mulheres.

Há uma resistência da sociedade laica. Na Tunísia, [Habib] Bourguiba [presidente derrubado em 1987 por Ben Ali] deu às mulheres o estatuto mais liberal de todo o mundo árabe. Agora, elas não querem perder esse estatuto. E os islamistas não querem que elas o mantenham. O problema crucial do islamismo é a sexualidade. O medo visceral do homem islamista é que alguém veja a sua mulher ou toque nela. Estão, decidem escondê-la. E há mulheres que aceitam isso, o que é completamente incompreensível.

Nas manifestações estão mulheres laicas e religiosas.
Sim. Ao mesmo tempo, a mulher actual, moderna, quer participar na vida e tem consciência política. Em Marrocos, há mulheres que usam véu e que trabalham como as outras. É uma questão de grau, às vezes trata-se de uma reacção contra o Ocidente, que vê a mulher como um objecto, passando essa ideia através do cinema e da televisão. Há mulheres que, mesmo não sendo fanáticas, reagem a isso. Não têm vontade de se mostrar assim. Há uma parte de moralidade no islamismo.»

Tahar Ben Jelloun (Marrocos, 1944)

quinta-feira, 21 de junho de 2012

da distância que se corre


movimento subtil das pestanas a acompanharem o lento fechar dos olhos. o cansaço de um corpo que já não resiste ao vento. à ventania. as portadas das janelas a baterem. a chuva a cair mansa, quase não se ouve. e as janelas a baterem nas portadas a abafar o som do chão molhado, a ser molhado. uma lágrima presa por dentro que desce até ao estômago e vai enchendo e não me deixa ter fome. estou cheia. estou cheia por dentro. preciso de um casaco novo e queria que uma avó me tricotasse um casaco. já não tenho avós e vou pensando no tempo e nas senhoras que talvez me quisessem tricotar um casaco. as ruas são quadros repetidos, é como visitar sempre o mesmo museu. são sempre os mesmos quadros, as mesmas pedras, muros, caixotes. mais valia que fossem ruas impressionistas. mas não são. não questiono a força das minhas pernas apesar das frágeis veias quererem romper a pele. como se tudo quisesse sair de dentro. não questiono a força das minhas pernas porque sei que um dia desato a correr e elas não me deixarão que ninguém me apanhe até pararem num precipício que ecoe e que deixe sair o que tem de sair, até dizer: regresso.

terça-feira, 5 de junho de 2012

constantly


do estado febril



estou em silêncio porque não posso gritar por ti. se a voz sair vai doer, tal como o coração. esse indiscreto órgão que até as mãos me faz tremer. como a febre que não baixa e os pesadelos que não desaparecem. os sonhos de fugas para locais longínquos e recônditos de terras que não conheço. com cores quentes. para sentir falta do familiar. sim. sou capaz de ir até à fronteira, sim. que me dissessem duas palavras apenas e eu iria. não estou a conseguir esconder tudo dentro de gavetas. pelo que vou desistir ou de guardar ou de as abrir. guarda para mim um bilhete de ida e eu vou até à fronteira. sim.

sexta-feira, 1 de junho de 2012


não me lembrava já do que era ter insónias. as paredes brancas são eternas. o escuro também, mesmo de olhos abertos. e o calor, que fica de uma parede à outra. sonho com umas mãos que ainda não conheço bem. não sonho com nada. sonho com coisa nenhuma. coisas umas em cima das outras. empilhadas. ninguém passa na rua, não são horas de passar na rua. não são horas de alguém dizer para me ir embora. olha, vai-te embora, obrigadinha e vai-te embora. Depois de meses de encalço de beleza. Olha, agora vais-te embora. Não vales nada, percebes? Isso não é para ninguém. Não são horas de ninguém passar na rua.

terça-feira, 1 de maio de 2012

dos pequenos tesouros


em 1950 descobriu-se um curioso esconderijo:
"os pequenos Dodgson haviam ali ocultado um «tesouro», talvez destinado às gerações futuras - um lenço de criança, um canivete, cacos de porcelana, um dado em miniatura, uma luva branca de dimensões minúculas... Numa ripa, lia-se a seguinte inscrição, escrita por Charles: «E havemos de percorrer o vasto mundo, à procura dos búfalos.»

em Lewis Carroll no país das maravilhas, de Stephanie Lovett Stoffel

segunda-feira, 30 de abril de 2012

da criatividade


"Curiosity, creativity, discovery and wonder; they aren’t traits of youth, they’re traits of learning. If you want to feel younger and you want to replicate the conditions of youth, do that." - Bejamin Salka

fonte: swissmiss

quinta-feira, 19 de abril de 2012


também ia escrever um texto sobre o meu país. mas como tenho a certeza de que iria começar a chorar prefiro parar por aqui e dizer: este já não é o meu país.

há muito tempo que não escrevo aqui. coisas banais. nem aqui nem nos cadernos, no papel, com as canetas e a tinta. quase já não sujo os dedos de tinta e os marcadores são demasiado limpinhos. hoje fui tirar fotografias aos ossos. radiações nos joelhos. máquinas com olhos que atravessam a pele. tenho pensado muito nos ossos. tenho pensado muito na natureza dos ossos. tenho pensado muito nos ossos do meu peito quando corro ou dou abraços. na forma dos meus ossos. nos ossos dos meus joelhos que doem. ou nos tendões. ou nas articulações. no corpo todo. nos corpos todos. não é só no meu corpo que penso. também penso em lábios. às vezes penso em lábios e em morrer pelos lábios como numa fábula qualquer muito conhecida. às vezes penso em morrer mas desperto logo de seguida. de momento sigo na estrada e já não tropeço nos pés. tenho andado mais devagar e é bom porque já não tropeço. mas o coração, esse, ao contrário dos meus passos, não desacelera nunca. tenho um coração e ossos e outras coisas que não importa referir porque estaria a repetir-me. tenho uma ilha. e tenho os meus músculos e os teus músculos que permitem aos meus músculos ir repousando noite por noite. tenho ainda força nos músculos. tenho ainda.

sábado, 10 de março de 2012

um coração consegue declamar mais do que uma voz.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012


as minhas mãos são duas tempestades.

domingo, 15 de janeiro de 2012

do equilibrismo

«A história de alguns encontros é um exercício de equilibrismo dos sentimentos.»

Marina Tsvietaieva, Indícios Terrestres

sábado, 14 de janeiro de 2012

do reiniciar


desistir de me agarrar a ideias passadas: 3 caixotes à porta + 5 sacos cheios de papéis para o ecoponto azul.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Les Quatre Cents Coups (1959)




(dir. François Truffaut)

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correr em direcção ao mar, em direcção ao nada, em direcção do mundo.